Licença poética

Morrendo de dor de cabeça e sem sono algum.



"Só tem uma coisa pior do que morrer:
— É viver pouco.
Por isso não quero mais morrer na cama.
Quando chegar o meu dia (e eu saberei quando chegar o meu dia), vou contratar o filho de um marceneiro judeu para fazer minha cruz. Terá que ser de madeira nobre, e mandarei pintá-la de preto. O suporte dos meus pés será prateado, no meio do mastro. Quero lindos cravos de ouro, perfumados, e uma tarde calma no sermão das montanhas. Um crepúsculo cor de abóbora, certamente. Mas, antes de ser pregado, tomarei uma taça de vinho vermelho ao som de Vangelis. "Sauvage et beau". E chamarei meus últimos dez amores para que passem óleo de amêndoas no meu corpo entusiasmado. Quero brilhar nesse ato final. Terei colares de pedras preciosas no pescoço, e na cabeça, coruscando, uma escandalosa coroa de flores do campo.

Estarei nu — e excitado, naturalmente. Quero sentir meu sangue descendo pela palma das minhas mãos, gota por gota, vazando pelo buraco dos pregos. Vou encher de gargalhadas os ouvidos delicados que puderem me ouvir, vou gritar o teu nome de Deus em vão. E me lembrarei dos pecados todos que deixei de cometer por absoluta falta de tempo.

Quando enfim chegar minha hora, vou olhar para vocês, imaginar um aceno, fazer um poema, lamber os meus lábios, pedir mais um copo de vinho — e que o vinho seja esfregado em minha boca com esponja de algodão. Quero que minha mãe me olhe sorrindo e me abençoe aos pés da cruz, e que meus irmãos, e meus amigos, e meus amores — que todos eles dancem, e que todos eles gritem em coro:
Só o Prazer nos livra da loucura!
Será assim que vou deixá-los, meus amores.
(Será assim!)
— Um dia, talvez, quem sabe.
Daqui uns duzentos anos..."

Edson Marques

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